Devidamente autorizados pelo autor, partilha-se o excelente texto de apresentação do Livro sem Ninguém, por Miguel Miranda:
Esta
rua celeste é uma rua especial, um lugar “vermelho lá vai
violeta”. É assim que se recorda as cores do arco iris:
Vermelho
LA VAI são as
iniciais de Laranja,
Azul, Verde;
Amarelo e Índigo;
Violeta
VERMELHO
LÁ VAI VIOLETA … VERMELHO LÁ VAI VIOLETA
Esta
é uma mnemónica poética, inesquecível.
O
arco íris sempre estimulou lendas e mitos, que o faziam um sinal
divino, significando a pacificação do mundo depois do Dilúvio; ou
um sinal de um tesouro escondido nas profundezas do horizonte onde
mergulha; para os ameríndios significava a alma das flores
silvestres das florestas e vales; Para os Navajos, significava uma
deusa da chuva de todas as estações; para o homem primitivo sempre
significou uma ponte que unia o céu e a terra, o físico com o
espiritual. Para os gregos, era uma estrada multicor por onde a deusa
Ísis, mensageira da
deusa Juno, mulher de
Zeus, trazia mensagens
divinas aos homens.
Na
rua celeste, onde tudo acontece em arco, as casas são sete, pintadas
com as cores do arco iris. Mas não só. Além
de identificadas pelas cor, atente-se no significado cabalístico do
número 7.
Há um sem número de
interpretações do significado deste número sete.
Pitágoras proclamou que o sete
é um número sagrado, perfeito e poderoso, além de mágico. Mas
também considerado o número da mentira.
Em diversas religiões o sete
é um número místico, significando a passagem do conhecido para o
desconhecido. Decantado na soma 3+4, o três, significa a Santíssima
Trindade e o quatro, os elementos físicos (terra, água, ar e
fogo).
- 7
são as virtudes: Fé, Esperança, Caridade, Prudência, Justiça,
Força e Temperança. -
7 são os
pecados capitais: Soberba, Ira, Inveja, Luxúria, Gula, Avareza e
Preguiça. -
7 são os
sacramentos da Igreja Católica: Batismo, Confirmação, Eucaristia,
Penitência, Unção dos Enfermos, Ordem e Matrimónio.-
7 são as Obras
de Misericórdia: Dar de comer, beber e vestir, dar pousada, assistir
os enfermos, visitar os presos e cuidar dos que partem pela morte
- 7
são os braços do candelabro judeu. O símbolo sagrado do judaísmo
é o memorá,
candelabro com sete braços indicando os sete dias da criação. -
7 são as notas
musicais com 7 escalas, 7 pausas e 7 valores.
- São 7 as cores do Arco-Íris.
- São 7 as cores do Arco-Íris.
Mas
voltemos à rua.
Um
bocado de estrada, sete casas, cada uma de sua cor; à entrada, duas
torres; ao fundo, o mar; a três quartos, uma horta; pelo meio, um
café, uma escola, uma florista, uma sucata.
Por
influência das cores do arco-iris mas também pela cabalística do
número sete, acontecem:
Fé,
Esperança, Caridade, Prudência, Justiça, Força e Temperança,
mas
também:
Soberba,
Ira, Inveja, Luxúria, Gula, Avareza e Preguiça
Tudo
isto deduzido, revelado, contado pelas coisas, não tanto pelas
pessoas, que são inaparentes, apenas suspeitadas.
As
personagens, os sentimentos, surgem e falam pelos objectos pessoais –
umas sapatilhas, uma bengala, a cana de pesca, a roupa a secar, uma
4L, fraldas, flores, produtos hortícolas, sapatos vermelhos – Este
é um processo muito original de contar.
Sendo a leitura um processo de abstracção em que ao leitor está
reservado o papel de construir as imagens das personagens, dos
cenários, vivenciar a intensidade dos sentimentos, com base na
aridez aparente das letras do texto, bem pode este leitor, quando
convenientemente estimulado, ir mais além e imaginar também os
personagens pelos objectos, os dramas e sentimentos pelas cores das
casas, os enredos pelos humores e a sazonalidade do tempo.
Este
processo muito original de contar é um dos grandes méritos deste
livro aparentemente “Sem Ninguém”
Na rua celeste do arco, as flores chamam-se
Júlias, porque as coisas são gente. Fizeram-me lembrar a Luísa, a
metralhadora do soldado Milhões, a desbaratar os alemães, na
batalha de La Lys.
Que disparate de associação, uma guerra perdida é apenas uma
guerra perdida, e na rua celeste do arco, o que se perdem são
batalhas, não a guerra toda.
Na
rua celeste do arco, é armados de Júlias que os invisíveis
habitantes combatem os demónios teutónicos (como a solidão e o
desamor). E talvez nem tudo esteja perdido.
No
fundo, a rua é uma ilha. E uma ilha aparentemente deserta. Esta
aparência é ilusória e enganosa, como se verá pelo andamento do
livro, supostamente “Livro sem Ninguém”. Faz parte de todos os
manuais de naufrágio, saber que qualquer ilha deserta não o é, e
que os nativos se revelam pelas pegadas que deixam na areia, pelos
sulcos nas árvores, o restolho na vegetação, uma peça de roupa a
secar, uma arma, que pode ser uma zarabatana, uma navalha ou um
pistolão, restos de comida, cascas de frutos, uns olhos de peixe
abandonados numa espinha descarnada. O leitor é uma espécie de
Robinson Crusoe, lendo a vida dos nativos nos vestígios de uma ilha
deserta. Cada dia que passa a bordo desta ilha, ou deste livro,
faz-se um entalhe na árvore da memória, para sabermos quantos temos
a menos para a morte da poesia.
No
Porto, uma ilha é quase uma rua assim. Com menos cor e mais gente,
mas com a mesma poesia.
Porque
é de poesia que se trata; este “Livro sem Ninguém” é um longo
e diverso poema sobre todas as cores dos sentimentos, sobre todos os
arcos do tempo, do céu, do mundo e da boca. Sobre a desnecessidade
de corpos para se falar de almas; sobre a loquacidade denunciadora
dos objectos e das casas.
No
fim, todas as vidas e histórias se fecham, em arco. Um arco celeste,
onde cada sentimento tem cor.
Acabei
de ler o livro e vou reclamar à editora. Trata-se de um caso
evidente e flagrante de publicidade enganosa. Julguei que estava a
comprar um romance e afinal, trata-se de um poema, algo que confunde
uma alma prosaica como a minha.
Comprei
o livro por este era um “Livro sem Ninguém”. Apetecia-me mesmo
um livro em branco, sem personagens a espantar-me o sossego,
emprestarem-me a pele, os medos, os dramas. Dou por mim a tropeçar
num sem número delas, dentro e fora das casas, dentro de sapatilhas,
estourando bolas de futebol no pátio da escola, fazendo oitos com
bicicletas de rodinhas laterais, pescando à linha na praia, sofrendo
dramas, paixões, violência física e mental, tilintando chávenas
nos cafés, cultivando a horta e o amor. Vou reclamar, não era nada
disto que eu comprei, dei um bom par de notas por um livro
supostamente “sem Ninguém”, que não me povoasse sonhos,
imaginação ou memória, e fui clara e abusivamente enganado.
Sacode-se o livro e as personagens suspendem-se em bungee jumping
literário, num exercício elástico de fora e dentro que me entorta
os olhos e emoções. Estou aqui que nem vermelho vai lá violeta…
Espero ser ressarcido com urgência pela editora. Isto
não se faz, senhores, enganar assim um leitor. Ainda por cima, o
diabo do livro tem uma espécie de grume que nos cola ao texto e suga
para dentro dele, impedindo-nos de o abandonar a meio. Cheio de
personagens e com este grau de visgo, este “Livro sem Ninguém” é
mesmo perigoso, e devia vir com um rótulo tipo maço de tabaco, com
caveira e aviso “prejudica gravemente a tranquilidade mental” ou
“contém poesia” ou outro amianto qualquer.
Isto
não se faz, senhores, a um leitor desprevenido como eu.
Se
os leitores passam a ser enganados impunemente pelos escritores, como
acreditar na ficção?"
Miguel Miranda apresentou o Livro sem Ninguém na FNAC Gaiashopping a 15 de Março de 2014
Fotografia de Cláudia Ferrreira