Livro sem Ninguém

Livro sem Ninguém
Capa aberta do livro

segunda-feira, 17 de março de 2014

Miguel Miranda sobre "Livro sem Ninguém" (O arco da rua Celeste)

Devidamente autorizados pelo autor, partilha-se o excelente texto de apresentação do Livro sem Ninguém, por Miguel Miranda:
 
"Na rua, tudo o que não é dito, acontece. E acontece em arco, profuso e multicor: o arco da rua celeste.

Esta rua celeste é uma rua especial, um lugar “vermelho lá vai violeta”. É assim que se recorda as cores do arco iris:

Vermelho LA VAI são as iniciais de Laranja, Azul, Verde; Amarelo e Índigo; Violeta

VERMELHO LÁ VAI VIOLETA … VERMELHO LÁ VAI VIOLETA

Esta é uma mnemónica poética, inesquecível.

O arco íris sempre estimulou lendas e mitos, que o faziam um sinal divino, significando a pacificação do mundo depois do Dilúvio; ou um sinal de um tesouro escondido nas profundezas do horizonte onde mergulha; para os ameríndios significava a alma das flores silvestres das florestas e vales; Para os Navajos, significava uma deusa da chuva de todas as estações; para o homem primitivo sempre significou uma ponte que unia o céu e a terra, o físico com o espiritual. Para os gregos, era uma estrada multicor por onde a deusa Ísis, mensageira da deusa Juno, mulher de Zeus, trazia mensagens divinas aos homens.



Na rua celeste, onde tudo acontece em arco, as casas são sete, pintadas com as cores do arco iris. Mas não só. Além de identificadas pelas cor, atente-se no significado cabalístico do número 7.

Há um sem número de interpretações do significado deste número sete. Pitágoras proclamou que o sete é um número sagrado, perfeito e poderoso, além de mágico. Mas também considerado o número da mentira.

Em diversas religiões o sete é um número místico, significando a passagem do conhecido para o desconhecido. Decantado na soma 3+4, o três, significa a Santíssima Trindade e o quatro, os elementos físicos (terra, água, ar e fogo).



- 7 são as virtudes: Fé, Esperança, Caridade, Prudência, Justiça, Força e Temperança. - 7 são os pecados capitais: Soberba, Ira, Inveja, Luxúria, Gula, Avareza e Preguiça. - 7 são os sacramentos da Igreja Católica: Batismo, Confirmação, Eucaristia, Penitência, Unção dos Enfermos, Ordem e Matrimónio.- 7 são as Obras de Misericórdia: Dar de comer, beber e vestir, dar pousada, assistir os enfermos, visitar os presos e cuidar dos que partem pela morte

- 7 são os braços do candelabro judeu. O símbolo sagrado do judaísmo é o memorá, candelabro com sete braços indicando os sete dias da criação. - 7 são as notas musicais com 7 escalas, 7 pausas e 7 valores.
- São
7 as cores do Arco-Íris.

Mas voltemos à rua.

Um bocado de estrada, sete casas, cada uma de sua cor; à entrada, duas torres; ao fundo, o mar; a três quartos, uma horta; pelo meio, um café, uma escola, uma florista, uma sucata.

Por influência das cores do arco-iris mas também pela cabalística do número sete, acontecem:

Fé, Esperança, Caridade, Prudência, Justiça, Força e Temperança,

mas também:

Soberba, Ira, Inveja, Luxúria, Gula, Avareza e Preguiça

Tudo isto deduzido, revelado, contado pelas coisas, não tanto pelas pessoas, que são inaparentes, apenas suspeitadas.

As personagens, os sentimentos, surgem e falam pelos objectos pessoais – umas sapatilhas, uma bengala, a cana de pesca, a roupa a secar, uma 4L, fraldas, flores, produtos hortícolas, sapatos vermelhos – Este é um processo muito original de contar. Sendo a leitura um processo de abstracção em que ao leitor está reservado o papel de construir as imagens das personagens, dos cenários, vivenciar a intensidade dos sentimentos, com base na aridez aparente das letras do texto, bem pode este leitor, quando convenientemente estimulado, ir mais além e imaginar também os personagens pelos objectos, os dramas e sentimentos pelas cores das casas, os enredos pelos humores e a sazonalidade do tempo.

Este processo muito original de contar é um dos grandes méritos deste livro aparentemente “Sem Ninguém”

Na rua celeste do arco, as flores chamam-se Júlias, porque as coisas são gente. Fizeram-me lembrar a Luísa, a metralhadora do soldado Milhões, a desbaratar os alemães, na batalha de La Lys. Que disparate de associação, uma guerra perdida é apenas uma guerra perdida, e na rua celeste do arco, o que se perdem são batalhas, não a guerra toda.

Na rua celeste do arco, é armados de Júlias que os invisíveis habitantes combatem os demónios teutónicos (como a solidão e o desamor). E talvez nem tudo esteja perdido.


No fundo, a rua é uma ilha. E uma ilha aparentemente deserta. Esta aparência é ilusória e enganosa, como se verá pelo andamento do livro, supostamente “Livro sem Ninguém”. Faz parte de todos os manuais de naufrágio, saber que qualquer ilha deserta não o é, e que os nativos se revelam pelas pegadas que deixam na areia, pelos sulcos nas árvores, o restolho na vegetação, uma peça de roupa a secar, uma arma, que pode ser uma zarabatana, uma navalha ou um pistolão, restos de comida, cascas de frutos, uns olhos de peixe abandonados numa espinha descarnada. O leitor é uma espécie de Robinson Crusoe, lendo a vida dos nativos nos vestígios de uma ilha deserta. Cada dia que passa a bordo desta ilha, ou deste livro, faz-se um entalhe na árvore da memória, para sabermos quantos temos a menos para a morte da poesia.

No Porto, uma ilha é quase uma rua assim. Com menos cor e mais gente, mas com a mesma poesia.

Porque é de poesia que se trata; este “Livro sem Ninguém” é um longo e diverso poema sobre todas as cores dos sentimentos, sobre todos os arcos do tempo, do céu, do mundo e da boca. Sobre a desnecessidade de corpos para se falar de almas; sobre a loquacidade denunciadora dos objectos e das casas.

No fim, todas as vidas e histórias se fecham, em arco. Um arco celeste, onde cada sentimento tem cor.



Acabei de ler o livro e vou reclamar à editora. Trata-se de um caso evidente e flagrante de publicidade enganosa. Julguei que estava a comprar um romance e afinal, trata-se de um poema, algo que confunde uma alma prosaica como a minha.

Comprei o livro por este era um “Livro sem Ninguém”. Apetecia-me mesmo um livro em branco, sem personagens a espantar-me o sossego, emprestarem-me a pele, os medos, os dramas. Dou por mim a tropeçar num sem número delas, dentro e fora das casas, dentro de sapatilhas, estourando bolas de futebol no pátio da escola, fazendo oitos com bicicletas de rodinhas laterais, pescando à linha na praia, sofrendo dramas, paixões, violência física e mental, tilintando chávenas nos cafés, cultivando a horta e o amor. Vou reclamar, não era nada disto que eu comprei, dei um bom par de notas por um livro supostamente “sem Ninguém”, que não me povoasse sonhos, imaginação ou memória, e fui clara e abusivamente enganado. Sacode-se o livro e as personagens suspendem-se em bungee jumping literário, num exercício elástico de fora e dentro que me entorta os olhos e emoções. Estou aqui que nem vermelho vai lá violeta…

Espero ser ressarcido com urgência pela editora. Isto não se faz, senhores, enganar assim um leitor. Ainda por cima, o diabo do livro tem uma espécie de grume que nos cola ao texto e suga para dentro dele, impedindo-nos de o abandonar a meio. Cheio de personagens e com este grau de visgo, este “Livro sem Ninguém” é mesmo perigoso, e devia vir com um rótulo tipo maço de tabaco, com caveira e aviso “prejudica gravemente a tranquilidade mental” ou “contém poesia” ou outro amianto qualquer.

Isto não se faz, senhores, a um leitor desprevenido como eu.

Se os leitores passam a ser enganados impunemente pelos escritores, como acreditar na ficção?"
 
Miguel Miranda apresentou o Livro sem Ninguém na FNAC Gaiashopping a 15 de Março de 2014

Fotografia de Cláudia Ferrreira