Livro sem Ninguém

Livro sem Ninguém
Capa aberta do livro

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Livro sem Ninguém no Mais Mulher

Apesar de titulado "A manhã do mundo", este é o pedacinho do Livro sem Ninguém no Mais Mulher de segunda-feira, com a Ana Rita Clara, para quem não viu.

Livro sem Ninguém como Livro do Dia TSF

Pode ouvir o programa aqui.
Mais tarde fará parte do booktrailer.

A mão eloquente, sanguínea, chuvosa, de um cinza luminoso, da Hélia Correia

Entrevista ao i (Edição de 5 e 6 de Abril de 2014)


Egoturismo

(esta é a intervenção na apresentação de 3 de Abril de 2014, em Lisboa, na Ler Devagar, que é também uma viagem pelas oito restantes, entre 27 de Fevereiro e 3 de Abril de 2014)

Eu não sou um orador, sou um redactor. E por isso redigi para vocês esta oração, que passo a dizer de improviso, porque sou um daqueles redactores que fala sempre de improviso.


O egocentrismo do escritor é o tema central deste improviso.

Ora, o egocentrismo é parecido com flatulência.

São ambos uma espécie de ilusão que, afinal, incomoda.

E é por isso que, para explicar o que tento fazer nos livros, o descentramento do ego e o centramento no senhor Esteves da farmácia e no mundo do senhor Esteves da farmácia, ou na Sofia da Livraria Ler Devagar, e no Ribatejo da Sofia da Livraria Ler Devagar, sem a qual vos garanto que não estaria aqui hoje, eu falei, nas oito apresentações anteriores deste livro no último mês, apenas dos outros, usando o escritor como o palhaço pobre do espectáculo, que nada vale, essencialmente, sem o que fica fora de si, livro incluído.

O escritor é um icebergue.

Um décimo está fora de água, o outro décimo sustém a parte visível. E a pessoa do escritor está no centro, é a rocha invisível, provavelmente a parte mais pequena de si próprio, mas a que lhe dá estrutura. Não vou comparar a alma com o ego ou com a flatulência, o cabeça muito menos (mas podia, se quisesse), mas são afinal as coisas mais pequenas ou invisíveis que nos fundamentam.


É por isso que as pessoas que deixam a visibilidade suprema do facebook para entrar num livraria e ver cada aparente egocêntrico falar de um livro dele, que afinal não é nada dele, mas das pessoas que apanharam frio e chuva e sol para o ouvir, merecem ouvir a história dos outros nele, não dele.


Porque um décimo de mim são livros, e os outros nove décimos também.

Porque um décimo dos livros são os outros e o mundo dos outros,

e os outros nove décimos também.


Então atribuo escritores e livros aos que, durante o último mês, andaram à chuva comigo.

Começa aqui o egoturismo.


Avisto a 27 de Fevereiro a Beatriz, na apresentação de Guimarães. A Beatriz tem quinze anos e explica-me que tem saudades das noites de verão, quando saíam todos felizes em famíla e o pai lhe explicava as constelações. Agora o pai, com a mesma idade do escritor que a olha nos olhos, não tem estrelas, tem Parkinson. Mas ainda a acorda todas as manhãs com um “bom dia princesa”. Eu digo à Beatriz que esses bons dias podem ser mais importantes do que as estrelas, e é óbvio que, quando chego a Lisboa, a mando com o Saint-Exupéry ao planetário Calouste Gulbenkian, onde não chegarão a entrar, porque o escritor se deterá a explicar à Beatriz, em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, precisamente as constelações úteis, as constelações da terra, como as de Saramago.


Avisto a 2 de Março o Manel, da apresentação do Estabelecimento prisional de Setúbal, e o Manel, ao saber que eu sou do Porto diz, com orgulho, eu também sou do Porto, e ao querer comparar-se com os saltadores das torres gémeas do primeiro livro, explica que também ele já se atirou de uma torre. Andava o Manel empoleirado pelos placards gigantes dos outdoors para aceder ao quarto andar de um prédio contíguo e roubar qualquer coisita. Ora, azar do Manel, quando bota o pé na varanda do quarto andar recuado traseiras do setenta e tal da Rua do Fulano, e se sente seguro, encosta o nariz ao vidro da portada, sinal de um aturado planeamento prévio, e divisa um par de polícias já no interior da casa, a atravessar a mesmíssima sala de estar que o Manel ia pilhar. Ora, pergunta-me ele, o que é o senhor fazia? Eu não queria ir preso, por isso saltei. E assim fracturou as duas pernas e a terceira e quinta vértebras, e foi preso na mesma. E ali estava, rijo mas quebradiço, no Estabelecimento Prisional de Setúbal. E esta foi, para o Manel, a experiência literária prévia que o faria entrar de cabeça no livro “A manhã do mundo”. Pois ao Manel apresentei o Alexandre Dumas e soube que eles foram vistos os dois num barquito a remos, hoje mesmo, de manhã, a enfrentar o mar no Bico d'Areia tendo como objectivo o Bugio.

Avisto, na tarde desse mesmo 2 de Março, a primeira apresentadora deste Livro sem ninguém, numa Évora chuvosa, a senhora procuradora e poetisa Maria José, de cujos atributos físicos não vou falar, porque não devo, ou, dito num napolitano cerrado, não vou falar di doje perfeti gammi e uno magnificu abito aranciu, mas falo da belíssima prelecção, e a quem atribuiria, não um livro napolitano, porque, como certamente perceberam, o napolitano era só para disfarçar, mas a companhia do Brian de Palma num passeio de descida do Príncipe Real até ao Jardim de São Pedro de Alcântara, onde perorariam, claro, sobre o Vestida para Matar, com uma incidência especial na ideia de que a senhora procuradora Maria José poderia facilmente ter sido uma Angie Dickinson morena.


E, como vinha a senhora procuradora para Lisboa, para Évora mandava a tia Graça com o livro do João Rebocho Pais. E, prontos, tá bem, com um cachecol do Benfica, que toda a gente já sabe que eu sou um portista tolerante, e até gosto do Benfica por causa do Boleibol e do Professor Jardim.


Não me posso esquecer de contar que em Évora encontrei uma experiência literária e política instantânea numa excelente pessoa que é marido da minha amiga Isabel, juíza de Execução das Penas do Manel das pernas partidas e demais companheiros. Bastou perguntar o nome ao marido da Isabel, que, como vão ver, uns levam para a literatura outros para a revolução que, não tarda, completa 40 anos. E assim foi durante toda a vida do rapaz: ou bem que és revolucionário, ou bem que és apaixonado pelo teatro. Eu só achei nobre. Chamava-se, claro, Otelo.


Em Leiria, o meu apresentador foi o Gil Vicente. É um profundo amigo de infância e, como eu costumo dizer, o génio mais singular que conheci. Tinha pouco mais de dezasseis anos e aprendia holandês numa semana, o suficiente para suportar uma conversação, e eu isso só bêbado nas queimas das fitas de Coimbra, a rolar pelas monumentais abaixo, mas já lá vamos. Para o Gil Vicente, atribuo, claro, o Gil Vicente. Um duplo Gil Vicente na Rua dos Douradores, com o guarda-livros Moreira entalado entre eles e o Bernardo Soares a espreitar do janelão do livro de razão.

Em Ovar quem apresentou foi o Afonso Cruz e o professor Carlos Granja, ou, mais propriamente, vinho tinto de Pias e morcela e ovos com bacon e bacalhau de cebolada. Aqui figurei uma cena mais intrigante, era o professor Cleto, director do Museu de Ovar, o Quixote, o senhor Silvério um Sancho Pança mais elegante, seria o primeiro o Rei de Alcântara e o segundo o seu ministro, eu o cavalo, o Afonso Cruz o redactor da corte para as aventuras que ambos desenvolveriam entre o Calvário e a Casa dos Bicos, e, finalmente, o professor Carlos o encarregado de contar tudo às crianças.

Em Gaia, como as coisas se passaram, tinha de aviar a jovem actriz e redactora Catarina Lacerda com um livro do Miguel Miranda, que, de viva voz, plangendo, chorando mesmo, se queixou à Rosário de que o Livro sem ninguém devia ter um aviso de poesia inserta, como nos maços de tabaco, e que pode matar, pois claro que pode matar, pode matar qualquer prosador desprevenido, mas não passa disso, a poesia que estupidamente não se auto-denuncia a escorrer pelos estendais não é culpa do autor, era o que faltava.

E como eu hoje não trouxe o meu blazer Ermenegildo Zegna, não digo, nem que me cortem este dedo, que depois de eu ficar gordo e num caber no fato do casamento, que era efectivamente Ermenegildo Zegna, mudei a etiqueta, caríssima, para todos os casacos que trago quando benho a Lisboa e digo assim, Bera, troca-me a etiqueta, e ela troca.

(A Bera é a minha mulher, para o caso de não terem percebido.)

Aliás, coitada da Bera, e o que ela passou numa mesa da confeitaria Arcádia, na abenida dos Aliados, onde eu lhe declarei amor de uma forma muito estranha, ora bê lá se percebes o que está escrito aí, era o livro de introdução ao direito do batista machado a falar de hermenêutica e ela disse num entendo e eu disse também eu num entendo, e depois beio o empregado da Arcádia e eu disse quero um café e ele, aqui só servimos lanches, e eu...

quero um café e um lanche, entom.
Em Coimbra, claro, para as duas dessões, o In Illo Tempore do Trindade Coelho, a antítese da solução de continuidade para os grandes professores, porque o que eu vi, nos dois momentos, na Bertrand com olhos jovens a brilhar, e na velha faculdade com olhos jovens a brilhar, ainda que de outra idade, foi grandes professores implicados no mundano onde os livros crescem e entre quem os livros crescem, e se o professor Seabra Pereira falou da essencialidade do Estranhamento em literatura, o professor Ferro falou apaixonadamente da Linda Hutcheon, e de como ela me poderia informar a mão posmodernista que, disse ele, escreveu o Livro sem Ninguém, mas vibrou, como todos, quando, num texto sobre o Solomon Burke e o sexo em Coimbra, este antigo aluno de Coimbra lembrou com saudade a noite do Bar Dom Dinis em que o Al Berto, entre poemas viscerais, nos mandou a todos, mesmo a todos, e literalmente, para o carvalho. E hoje todos vibramos. O Torga dormia em paz na Rua Luís de Camões, a um quilómetro em linha recta do hospital velho, onde o Al Berto pôs o dedo em riste e a voz funda.

E por Lisboa tantos mais, literatos anónimos e improváveis, tantas vezes sem livros, que passo a citar com nome, como representantes de todos vocês, se não se importam, e eu já falei ao princípio da Sofia Ribatejana da Ler Devagar, não falei? Está falado.


Pois não falei da personagem Alcaso, a que atribuiremos temporariamente o nome de Sónia, paradigma do espanto literário, para quem eu transformaria o Tejo em Rio Mekong, numa viagem de barco até ao Montijo, e traria o coração das trevas do Conrad, que já não mais se descolam do apocalipse do Copolla e da sombra visceral do Brando, prestes a decair, e fá-lo-ia porque a amizade também fala de vísceras.


À personagem Bettencourt, temporariamente com o nome de Elsa, paradigma do ombro literário, jardineira e doceira do inverno e da primavera na Rua do Arco Celeste, eu dava a companhia, obviamente, do George Perec, mas sem aquela pera assustadora e aquele cabelo desalinhado, portanto fazia-lhe a barba e cortava-lhe o cabelinho à tesoura, e queria-te ver, Elsa, a fazer os doces todos sem a letra “e”.


À personagem Lucas, temporariamente com o nome Pedro, nuns dias, e Isabel noutros, paradigma do chão literário, que é um exemplo de estudo e trabalho sem vida à larga, vejo, numa manhã submersa, a entrar na UAL com o Vergílio, de onde seguem para uma qualquer conferência europeia e representam orgulhosamente Portugal sem tradução simultânea. Ou então, quando é Isabel, Nova Iorque, só Nova Iorque, como personagem, livro e escritor e tudo.


À personagem Nucha, temporariamente com o nome de Ana, paradigma do colo literário, lembro-a em bicos de pés para as pautas de entrada em Direito. É rapariga tutelar, como tantas mulheres que são mães, mas tomam conta de nós todos, são companheiras do marido e amigas mais velhas do resto do mundo, e por isso precisa de calma e ordem, pelo que a mandava aviar calmantes à farmácia da Calçada do Combro, que é do Esteves sem metafísica, e para meio entendedor.

E a personagem Almeida, temporariamente com o nome de Carla, paradigma da grande leitora, finalmente com as mãozinhas fora da minha camisa. É que ela, que hoje já passou dos trinta, estava com uns seis aninhos sentada no meu colo não literário e descobriu no bolso da minha camisa um maço de SG Lights. A gaiata fez a costumeira pergunta retórica: tu fumas? E eu: Eu não, isso é do meu pai. E ela, de um pincho, como se diz no Porto, correu escadas acima e reportou o facto a toda a família: o Pedro anda com os cigarros do pai. Pois a essa pérfida criança eu atribuiria a companhia do Lobo Antunes, e a mesma missão que dois bombeiros voluntários lisbonenses me atribuíram num dia de quarenta graus, na esquina da Duque de Loulé com a Camilo Castelo Branco: o senhor, para chegar ao cimo rua do Conde Redondo, não corta para lado nenhum porque não conhece, desce esta até ali abaixo, e depois vira à esquerda e sobe tudo até lá acima.E eu, a olhar para o fundo da rua e fazer contas aos graus, pergunto, Não posso continuar aqui pela Duque de Loulé, e depois....Não senhor! O senhor não conhece. Faça como nós dizemos, não seja teimoso! E eu fiz, mas fui sempre a pensar, Depois és tu, querido bombeiro, que espremes o que sobrar de mim. E a Carla também. Mas com o António Lobo Antunes à ilharga e, claro, Os Cus de Judas na mão.


Last, but not the least, não se explica a ilusão do egocentrismo, e, aceito, não vale a pena insistir em comparações soezes com flatulência, porque fica, no mínimo, deselegante, a não ser que a flatulência fosse, por exemplo, uma americanice para a condição ou o achaque dos viciados em procura de apartamentos. O FLATulente compulsivo procura agora um apartamento em alcântara, e, enquanto o não encontra, vive, come e dorme na Ler Devagar, onde toma café e escreve assim, porque se quer egodescentrar:


“Abrando aqui quase todos os dias, neste café, nesta livraria, à espera de alguém que depois levo para casa e assim fica o dia dividido em dois: o lado de cá, de separação e solidão, o trabalho, e o lado de lá, o regresso aos meus, a reunião. Gosto de vir a este sítio, gosto de passar pelas pessoas e de vê-las passar por mim, gosto de me encostar aos vidros e de entender os corpos num esforço de adequação ao espaço e os olhares num esforço de adequação ao silêncio, chego e peço sempre um café comprido com adoçante e um copo de água e abro o portátil e arranco a música nos ouvidos e, quando não tenho tempo para trabalhar mais um bocadinho, escrevo coisas assim. Tenho andado com a literatura à cintura, como uma daquelas bolsinhas fora de moda, tenho andado mais calado do que falante, mais com os dedos em suspenso sobre o teclado do que caindo sobre ele, tenho lido tanto, ouvido tanto, olhado tanto para as pessoas que passam para as cidades delas, para os momentos delas, tenho conhecido tanta gente sem livros e de rebarbadora e de cana de pesca e de chave de parafusos na mão a quem falo sempre de livros, elas perguntam o que é que eu faço e se eu digo que sou advogado sou consultado, se digo que sou escritor sou olhado de lado, uns sorriem, outros continuam como se eu não tivesse dito nada, e eu vou falando do que está dentro do livros e depois à noite aproximo-me da mancha do meu filho, que é o bastante para o reter, e penso que sempre que ele escreve, e é quase nunca, escreve melhor do que eu e então pergunto pela literatura para ajudar a levantar aquelas rebarbadoras, aquelas canas de pesca, aquelas chaves de parafuso, porque eu sei que há livros para nada mas tenho a certeza de que há livros que são tudo e sei, hoje sei, cada vez mais sei, que tenho de comunicar a literatura para dentro daqueles olhos duros e daqueles corpos doridos, fazê-los parar e escrever no ar para eles, pegar nas frases que já estão feitas e os confortam e tirar-lhes um verbo, aplicar-lhes uma luz, um cheiro, um botão, um barulho que os faça acordar durante alguns segundos e depois voltar à função e levar na boca, para o café, para este café, umas horas mais tarde, a inquietação que eu lhes dei, como eu trago tudo deles para aqui, que nunca nenhum me provocou o tédio que me provocam as pessoas importantes todos os dias. Estamos perto,

estamos perto, filho. ”


E terminaria com a avó Júlia, porque foi com ela que comecei há três anos na Bulhosa de Entrecampos, quando lhe chamei minha editora privativa, ainda mais exigente do que a Rosário, e porque é o nome dela que este Livro sem Ninguém inaugura para as azedas, isto foi o que este icebergue lhe disse no primeiro almoço depois de ela, com oitenta e oito anos, oitenta nove quase perfeitos, morrer:


Hoje almoçamos sem ti, e eu quero que a manhã

siga lenta, e nunca chegue

a hora de contar

os pratos


Hoje almoçámos sem ti, e eu tentei disfarçar

a tua ausência, mas a mão

ia sempre descansar

no lugar onde comias.

A altura do naperon ao chão

e o fingimento

e a tristeza na boca

e a vida,

tudo parecia

igual


E levantou-se a mesa e o teu lugar

estava limpo, mas eu

vim sacudir as migalhas

que fingi

dentro do punho fechado


Hoje o sol deteve-se nos telhados e o frio veio

das ombreiras, porque almoçámos


sem ti.

Obrigado!

PG-M 2014
Fotos de Mónica Joady, João Manso, Carlos Granja, Maria Porto, Elisa Costa Pinto, José Florim, Biblioteca Avelar Brotero e Margarida Nunes

Primeiras apresentações do Livro sem Ninguém

Aqui vão os cartazes das apresentações de

13 de Março, Museu de Ovar, 21:30h, por Afonso Cruz



15 de Março, Fnac Gaiashopping, 18h, por Luís Miguel Rocha e Miguel Miranda, com Maria Rosário Pedreira e Clarice Lispector (por Catarina Lacerda):


Já decorridas:

2 de Março: Leiria, por Gil Vicente


 1 de Março: Évora, por Maria José Lascas
 
27 de Fevereiro: Guimarães, destacou-se a Beatriz

segunda-feira, 17 de março de 2014

Miguel Miranda sobre "Livro sem Ninguém" (O arco da rua Celeste)

Devidamente autorizados pelo autor, partilha-se o excelente texto de apresentação do Livro sem Ninguém, por Miguel Miranda:
 
"Na rua, tudo o que não é dito, acontece. E acontece em arco, profuso e multicor: o arco da rua celeste.

Esta rua celeste é uma rua especial, um lugar “vermelho lá vai violeta”. É assim que se recorda as cores do arco iris:

Vermelho LA VAI são as iniciais de Laranja, Azul, Verde; Amarelo e Índigo; Violeta

VERMELHO LÁ VAI VIOLETA … VERMELHO LÁ VAI VIOLETA

Esta é uma mnemónica poética, inesquecível.

O arco íris sempre estimulou lendas e mitos, que o faziam um sinal divino, significando a pacificação do mundo depois do Dilúvio; ou um sinal de um tesouro escondido nas profundezas do horizonte onde mergulha; para os ameríndios significava a alma das flores silvestres das florestas e vales; Para os Navajos, significava uma deusa da chuva de todas as estações; para o homem primitivo sempre significou uma ponte que unia o céu e a terra, o físico com o espiritual. Para os gregos, era uma estrada multicor por onde a deusa Ísis, mensageira da deusa Juno, mulher de Zeus, trazia mensagens divinas aos homens.



Na rua celeste, onde tudo acontece em arco, as casas são sete, pintadas com as cores do arco iris. Mas não só. Além de identificadas pelas cor, atente-se no significado cabalístico do número 7.

Há um sem número de interpretações do significado deste número sete. Pitágoras proclamou que o sete é um número sagrado, perfeito e poderoso, além de mágico. Mas também considerado o número da mentira.

Em diversas religiões o sete é um número místico, significando a passagem do conhecido para o desconhecido. Decantado na soma 3+4, o três, significa a Santíssima Trindade e o quatro, os elementos físicos (terra, água, ar e fogo).



- 7 são as virtudes: Fé, Esperança, Caridade, Prudência, Justiça, Força e Temperança. - 7 são os pecados capitais: Soberba, Ira, Inveja, Luxúria, Gula, Avareza e Preguiça. - 7 são os sacramentos da Igreja Católica: Batismo, Confirmação, Eucaristia, Penitência, Unção dos Enfermos, Ordem e Matrimónio.- 7 são as Obras de Misericórdia: Dar de comer, beber e vestir, dar pousada, assistir os enfermos, visitar os presos e cuidar dos que partem pela morte

- 7 são os braços do candelabro judeu. O símbolo sagrado do judaísmo é o memorá, candelabro com sete braços indicando os sete dias da criação. - 7 são as notas musicais com 7 escalas, 7 pausas e 7 valores.
- São
7 as cores do Arco-Íris.

Mas voltemos à rua.

Um bocado de estrada, sete casas, cada uma de sua cor; à entrada, duas torres; ao fundo, o mar; a três quartos, uma horta; pelo meio, um café, uma escola, uma florista, uma sucata.

Por influência das cores do arco-iris mas também pela cabalística do número sete, acontecem:

Fé, Esperança, Caridade, Prudência, Justiça, Força e Temperança,

mas também:

Soberba, Ira, Inveja, Luxúria, Gula, Avareza e Preguiça

Tudo isto deduzido, revelado, contado pelas coisas, não tanto pelas pessoas, que são inaparentes, apenas suspeitadas.

As personagens, os sentimentos, surgem e falam pelos objectos pessoais – umas sapatilhas, uma bengala, a cana de pesca, a roupa a secar, uma 4L, fraldas, flores, produtos hortícolas, sapatos vermelhos – Este é um processo muito original de contar. Sendo a leitura um processo de abstracção em que ao leitor está reservado o papel de construir as imagens das personagens, dos cenários, vivenciar a intensidade dos sentimentos, com base na aridez aparente das letras do texto, bem pode este leitor, quando convenientemente estimulado, ir mais além e imaginar também os personagens pelos objectos, os dramas e sentimentos pelas cores das casas, os enredos pelos humores e a sazonalidade do tempo.

Este processo muito original de contar é um dos grandes méritos deste livro aparentemente “Sem Ninguém”

Na rua celeste do arco, as flores chamam-se Júlias, porque as coisas são gente. Fizeram-me lembrar a Luísa, a metralhadora do soldado Milhões, a desbaratar os alemães, na batalha de La Lys. Que disparate de associação, uma guerra perdida é apenas uma guerra perdida, e na rua celeste do arco, o que se perdem são batalhas, não a guerra toda.

Na rua celeste do arco, é armados de Júlias que os invisíveis habitantes combatem os demónios teutónicos (como a solidão e o desamor). E talvez nem tudo esteja perdido.


No fundo, a rua é uma ilha. E uma ilha aparentemente deserta. Esta aparência é ilusória e enganosa, como se verá pelo andamento do livro, supostamente “Livro sem Ninguém”. Faz parte de todos os manuais de naufrágio, saber que qualquer ilha deserta não o é, e que os nativos se revelam pelas pegadas que deixam na areia, pelos sulcos nas árvores, o restolho na vegetação, uma peça de roupa a secar, uma arma, que pode ser uma zarabatana, uma navalha ou um pistolão, restos de comida, cascas de frutos, uns olhos de peixe abandonados numa espinha descarnada. O leitor é uma espécie de Robinson Crusoe, lendo a vida dos nativos nos vestígios de uma ilha deserta. Cada dia que passa a bordo desta ilha, ou deste livro, faz-se um entalhe na árvore da memória, para sabermos quantos temos a menos para a morte da poesia.

No Porto, uma ilha é quase uma rua assim. Com menos cor e mais gente, mas com a mesma poesia.

Porque é de poesia que se trata; este “Livro sem Ninguém” é um longo e diverso poema sobre todas as cores dos sentimentos, sobre todos os arcos do tempo, do céu, do mundo e da boca. Sobre a desnecessidade de corpos para se falar de almas; sobre a loquacidade denunciadora dos objectos e das casas.

No fim, todas as vidas e histórias se fecham, em arco. Um arco celeste, onde cada sentimento tem cor.



Acabei de ler o livro e vou reclamar à editora. Trata-se de um caso evidente e flagrante de publicidade enganosa. Julguei que estava a comprar um romance e afinal, trata-se de um poema, algo que confunde uma alma prosaica como a minha.

Comprei o livro por este era um “Livro sem Ninguém”. Apetecia-me mesmo um livro em branco, sem personagens a espantar-me o sossego, emprestarem-me a pele, os medos, os dramas. Dou por mim a tropeçar num sem número delas, dentro e fora das casas, dentro de sapatilhas, estourando bolas de futebol no pátio da escola, fazendo oitos com bicicletas de rodinhas laterais, pescando à linha na praia, sofrendo dramas, paixões, violência física e mental, tilintando chávenas nos cafés, cultivando a horta e o amor. Vou reclamar, não era nada disto que eu comprei, dei um bom par de notas por um livro supostamente “sem Ninguém”, que não me povoasse sonhos, imaginação ou memória, e fui clara e abusivamente enganado. Sacode-se o livro e as personagens suspendem-se em bungee jumping literário, num exercício elástico de fora e dentro que me entorta os olhos e emoções. Estou aqui que nem vermelho vai lá violeta…

Espero ser ressarcido com urgência pela editora. Isto não se faz, senhores, enganar assim um leitor. Ainda por cima, o diabo do livro tem uma espécie de grume que nos cola ao texto e suga para dentro dele, impedindo-nos de o abandonar a meio. Cheio de personagens e com este grau de visgo, este “Livro sem Ninguém” é mesmo perigoso, e devia vir com um rótulo tipo maço de tabaco, com caveira e aviso “prejudica gravemente a tranquilidade mental” ou “contém poesia” ou outro amianto qualquer.

Isto não se faz, senhores, a um leitor desprevenido como eu.

Se os leitores passam a ser enganados impunemente pelos escritores, como acreditar na ficção?"
 
Miguel Miranda apresentou o Livro sem Ninguém na FNAC Gaiashopping a 15 de Março de 2014

Fotografia de Cláudia Ferrreira